O manto do medo - Celso Malavoloneke

O manto do medo - Celso Malavoloneke

Temos medo do passado, porque foi de muito sofrimento; muita gente sofreu e muita gente morreu e ainda mais gente perdeu o sentido da esperança. Temos medo do presente, porque o passado ainda está presente demais e por isso mesmo temos mais medo do futuro.

  

Encontrei-me na rua, esta semana, com um companheiro de muitas lutas, o Dinho Major. Mesmo na rua, assim de esguelha, ainda deu para trocar umas rápidas reflexões sobre as malambas da vida e da terra, como é já nosso vício antigo. Nos parcos minutos, enquanto eu esperava pelo carro e ele fazia uma pausa na caminhada que decidira empreender da praceta Farinha Leitão para algures na Mutamba – dizia que a pé chegava mais rápido e fazia um exercício de esquebra! – ainda deu para reflectir em torno da pergunta «Eh! Pá! Já viste como andamos todos envoltos num manto de medo?»

 

De facto, anda todo o mundo com medo de todo o mundo. Toda a gente tem medo até da própria sombra. Todas as pessoas têm medo de todas as coisas. E assim vamos nós: os pais com medo dos filhos e os filhos com mais medo ainda dos pais, as mulheres com medo dos esposos e estes também com medo das esposas (a alegoria do rolo da massa nunca foi tão presente!). Os irmãos com medo dos irmãos, até das igrejas já se quer que tenhamos medo: podem roubar o povo em nome de um Cristo inventado e alienar a nossa juventude com sexo libertino, desde que ponham uma camisinha que elas mesmo oferecem, mas temos que ter medo de denunciar isso, senão levam-nos a tribunal e exigem que paguemos milhões de dólares.

 

Temos medo do passado, porque foi de muito sofrimento; muita gente sofreu e muita gente morreu e ainda mais gente perdeu o sentido da esperança. Temos medo do presente, porque o passado ainda está presente demais e por isso mesmo temos mais medo do futuro. Temos medo do que ele poderá trazer para os nossos filhos e os nossos filhos ganham com isso medo do medo dos pais.

 

Temos medo de dormir, porque corremos o risco de sonhar com coisas lindas que se transformarão no pesadelo da realidade com que lidamos ao despertar. Temos medo do céu, porque receamos – ou invejamos – o seu desprezo de limites e temos medo da terra, porque impõe um limite firme ao nosso gesto de cair.

 

Temos medo de falar, porque as palavras podem ofender alguém que nos pode dar com o pau. Por isso refugiamo-nos no silêncio e os mais corajosos no anonimato; temos medo de cantar, não vá ainda a nossa voz não estar na sintonia do coro geral. Temos medo de amar, não vamos ainda ser rejeitados e sofrer no processo. Enfim, temos medo de andar pelos próprios pés. Fica mais fácil se magwelar na boleia dos outros. Então não temos medo da dor dos pés, da dor do cotovelo?

 

Nesse semba de medo total, ficamos até com medo de viver a própria vida. Vivemos então o quê? As sobras dos que vivem de verdade. Ora é uma ONG das estranjas que vem nos ensinar a vida, ora é uma igrejola de uma brazuka qualquer que vem nos mostrar com que linhas se coze com banha de cobra; ora é um Chico-Esperto que vem nos sabular como continuar a ter medo da vida; ora é um gringo que nos vem com paninhos quentes à nossa frente, enquanto se ri de nós com os amigos por trás. Até dos chinocas já temos medo, quando vuzam com aquelas basculantes cheias de burgau, é sair da frente à toda a velocidade. Senão te vuzam mesmo, brincas! E assim como assim, estamos todos envoltos num manto axsfixiante de Medo. Só não temos medo deste medo total…

 

Mas medo porquê, se a guerra já acabou? Medo de quê, se o ente querido, combatente da kwêmba, já voltou? Medo de quê, se as estradas até estão boas, já podemos viajar sem medo de emboscadas, desfrutando as paisagens que Deus deu à nossa terra? Medo de mais quê, se o bilo entre o Mampelas e os Có-có-ró-có é de boca, que eles mesmo, algumas vezes, até nos contam anedotas de morrer de rir até chorar? Medo de quê, se a fome que o PAM matava agora é a lavra que o faz; medo de quê mais então – perguntei eu ao kamba Dinho. O Dinho, conhecido pela veia filosófica, olhou para o céu, coçou a cabeça que já começa a ficar grisalha e ficou de boca. Isso mesmo: não respondeu.

 

Vai dali que fiquei com suspeita do meu kamba de vinte anos: Será que ele tinha medo de dizer que há mwatas grandes a quem interessa que haja medo? Muito medo mesmo? Que só sentem que a situação está controlada quando paira no ar, como cheiro putrefacto, essa áurea nauseabunda do Medo? Que o Medo é a vedação electrificada das suas vivendas de luxo e dos condomínios da periferia nobre; que o Medo é a estrada por onde roncam os bólides último grito que os filhos partem em «rachas» na calada da noite – ou mesmo à luz do dia, isto já não mais importa? Que o Medo é a sua armadura, o seu escudo, a sua espada e o seu corcel de guerra? Que o Medo é o seu aliado mais fiel, o guarda mais eficaz, a alavanca mais poderosa?

 

Na hora, pensei cá comigo, o Dinho tem medo de me dizer isso, porque pensa que sou bufo. Pópilas, estou paiado, pensei. Fiquei então com medo de mim mesmo, o que, como podem entender os caríssimos leitores e leitoras, era já o fim da picada.

 

Foi então que eu e o Dinho Major nos olhámos brevemente nos olhos; lembrámos a reguilice de kanûkus e decidimos que o único medo que vale a pena ter é o medo de ter Medo. Separámo-nos mais felizes connosco próprios; ele para continuar a sua caminhada, onde chegou mais rápido que os bólides dos donos do Medo, e eu para escrever a crónica deste «Canto».

 

 

Fonte: SA

 

Comentario

Granda Crónica!

Kapúepúe | 25-10-2010

Hoje em dia até dá medo fazer sexo com a sua própria esposa lá em casa, porque a empregada pode esconder uma camara de filmar e amanhã aparecer no "youtube".

Re:Granda Crónica!

belladona | 25-10-2010

hahahhahahaha essa eh forte e eh verdade a mim tive o azar deperder uma makina fotografica em minha propia casa durante uma fsta(algum roubou) dia seguinte as fotos minhas nuas que tinha la apareceram na net dam!!! qumundo, ja nao se respeita a privacidad das pessoa....

Escondido algures em Lusaka, zambia

Jonas Malheiro Savimbi | 23-10-2010

Têm medo porque voces sao covardes e lambem até as orelhas do Jose Eduardo dos Santos.

Como nao ter medo..

joao paulo | 22-10-2010

Como e que se "pode" nao ter medo hoje dia em Angola com a situacao surrealista que se esta a viver,se ate por um discurso de JES se vai fazer uma marcha de apoio,se ainda hoje um jornalista(outra vez da radio despertar!)foi atacado com arma branca,se o proprio director do jornal de Angola defende a farsa do discurso de JES como um bulldog defende um bife suculento??claro que temos que ter medo!so nao tem medo quem esta 100% de que pode fazer e dizer o que quizer e "la em cima" o pessoal nao vai interpretar mal as sua palavras,que vao por elas no contexto certo a seu favor,senao qualquer adulto normal tem medo ate da sua sombra,a esse ponto chegamos...

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